O Que Está na Causa do Alcoolismo? A minha opinião
- Stefani Busatta
- 19 de mar.
- 4 min de leitura
Trauma? Automedicação para questões de saúde mental? Isolamento? O debate sobre a origem do alcoolismo frequentemente gira em torno da existência de uma causa subjacente, como traumas não resolvidos, que, uma vez tratados, eliminariam a dependência. No entanto, a minha experiência pessoal com o transtorno do uso de álcool, a perda de um parceiro para a mesma condição e anos de atuação na área da recuperação me levaram a uma conclusão diferente: essa visão não reflete a realidade.
Embora muitas pessoas com trauma desenvolvam dependências, há também aquelas que, apesar de experiências traumáticas, nunca se tornam dependentes. Da mesma forma, existem indivíduos com alcoolismo que não possuem um histórico significativo de trauma. A maioria das pessoas que se submete a diversas terapias para tratar traumas e alcoolismo continua a sofrer recaídas. Isso ocorre porque a terapia foi ineficaz? Não necessariamente. A questão fundamental é que o alcoolismo provoca mudanças estruturais e funcionais no cérebro devido à exposição repetida ao álcool. Essas mudanças permanecem mesmo após um período de sobriedade, tornando a abstinência uma luta constante. Sem tratar essas alterações neurológicas, a motivação para beber persiste e, na verdade, até se intensifica ao longo do tempo, resultando em recaídas quase sempre inevitáveis diante de estímulos internos e externos.
Quando consumimos álcool, são ativados processos químicos e hormonais no cérebro que influenciam o nosso estado emocional. O álcool desencadeia a liberação de endorfinas, promovendo uma sensação de prazer e relaxamento. O cérebro humano possui um sistema de recompensa, que evoluiu para reforçar comportamentos benéficos à sobrevivência, como a prática de exercícios, alimentação, relações sexuais e interações sociais. No entanto, o álcool e outras substâncias psicoativas geram uma recompensa desproporcionalmente intensa em comparação com esses comportamentos naturais. Com o consumo contínuo, os circuitos neurais associados ao prazer se tornam cada vez mais reforçados, transformando o consumo de álcool num hábito profundamente enraizado. Isso faz com que os caminhos neurais associados ao consumo se tornem cada vez mais robustos e de fácil acesso, como se uma estrada secundária se transformasse numa autoestrada de sete faixas. O resultado é um aumento progressivo da motivação para beber, mesmo que isso traga graves consequências para a saúde e o bem-estar do indivíduo.O que começa como um simples hábito pode se tornar uma compulsão incontrolável, impulsionada por vias neurais fortalecidas.
Além disso, pesquisas apontam uma predisposição genética para o alcoolismo. Indivíduos com histórico familiar da condição podem ter uma bioquímica cerebral que os torna mais vulneráveis à dependência. Essas pessoas podem experimentar uma resposta exacerbada ao álcool, sentindo uma euforia intensa em vez de um mero relaxamento. Esse efeito amplificado fortalece o ciclo de reforço do sistema de recompensa, tornando o comportamento cada vez mais difícil de controlar. Com o tempo, a tolerância ao álcool se desenvolve, exigindo quantidades cada vez maiores para se obter o mesmo efeito, ao mesmo tempo, em que outras fontes de prazer se tornam menos satisfatórias.
O impacto do álcool não se limita ao sistema de recompensa. O consumo contínuo também afeta regiões do cérebro responsáveis por tomada de decisão, memória e capacidade crítica. Isso resulta num padrão de busca compulsiva pela substância, impulsionado mais por uma resposta automática do que por uma decisão consciente. O consumo de álcool, portanto, deixa de ser uma escolha racional e se transforma num impulso difícil de conter.
Embora traumas e transtornos de saúde mental possam aumentar o risco de desenvolver uma dependência, eles não são a causa direta do alcoolismo. Pessoas que enfrentam dor emocional intensa ou sofrimento psicológico podem recorrer ao álcool como uma forma de alívio rápido, o que aumenta a sua exposição e, consequentemente, o risco de dependência. No entanto, é fundamental compreender que o trauma, por si só, não é a causa direta do alcoolismo. O que ocorre é que, ao buscar conforto no efeito relaxante do álcool e consumi-lo com frequência, a pessoa se expõe aos processos neurobiológicos descritos anteriormente, tornando-se vulnerável ao desenvolvimento da dependência.
Em resumo, o alcoolismo é um fenômeno complexo, envolvendo fatores genéticos, neuro químicos e ambientais. Embora questões como trauma e saúde mental possam influenciar o início do consumo excessivo, a dependência é essencialmente um problema biológico, resultante de alterações cerebrais que perpetuam o ciclo do vício. Compreender esses mecanismos é fundamental para desenvolver abordagens eficazes de tratamento e prevenção.
O Método Sinclair representa uma verdadeira mudança de paradigma no tratamento do alcoolismo. Esse método se baseia na extinção farmacológica do comportamento de beber por meio do uso direcionado da naltrexona, um bloqueador de opioides. Ao ser administrada antes do consumo de álcool, a naltrexona reduz a libertação de endorfinas e, consequentemente, os efeitos eufóricos associados à bebida. Com o tempo, conforme a pessoa bebe sem obter a recompensa esperada, o cérebro aprende que o álcool não proporciona mais o mesmo prazer, levando à extinção do comportamento compulsivo.
Este é o único tratamento que reverte a motivação para beber ao estado original, anterior ao desenvolvimento da dependência. Dessa forma, faz sentido priorizar a estabilização neurológica do indivíduo antes da introdução de terapias convencionais. Quando a pessoa já não experimenta desejo intenso e a compulsão pelo álcool foi reduzida, a terapia tem muito mais hipóteses de ser eficaz, pois o indivíduo estará num estado mental mais recetivo e capaz de processar questões emocionais e psicológicas sem a interferência do desejo incontrolável de beber.
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